quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Diário 3

Estamos na estrada de Jaipur para Agra. As condições da rodovia duplicada são bem melhores do que a anterior. Acabei de dar uma aula sobre Hinduísmo no ônibus, com auxílio de um texto. Agora estamos vendo um documentário sobre a Índia na oscilante televisão do ônibus.
O Rajastão deixará saudades. Foi o ponto encantado de 3 cidades principescas: Jaipur, Udhaipur e Jodhpur . Terra de marajás e do cruzamento do mundo hindu com o Império Mughal. Fomos a 3 fortes e a 3 palácios, navegamos em lagos e usamos roupas indianas. Fomos de fato apresentados à condimentada cozinha indiana, causando variados efeitos e apreciações. Agora, à nossa frente, a expectativa do Taj Mahal.
Os campos ao nosso redor estão cheios de canola e de arroz. Para o turista que está na Índia, é difícil acreditar que 25 % da população vive abaixo da linha da pobreza, ou seja, passa fome. Um quarto de quase 1,2 bilhões de pessoas é muito, quase dois brasis. Nos hoteis luxuosos somos entupidos de comida. Fomos a um restaurante vegetariano em Jaipur, para um jantar com o primo do nosso guia aqui na Índia. O serviço era tão rápido que os “nãos” eram ignorados pelos atendentes que levavam e enchiam os pratos numa sequência pantagruélica de comida. Uma espécie de bruschetta (ou várias espécies) seguidas de um queijo no molho condimentado, massas, pizzas, legumes grelhados, arroz e outros pratos que comemos sem exatamente saber o que eram. Uns beberam a cerveja Kingfisher (o mesmo nome da companhia aérea que nos trouxe) e alguns ousaram o vinho indiano: frutado, levemente adocicado e sem um corpo ou aroma complexos. Parece uma aurora enológica, com concessões ao açúcar e ao frutado que nós já enfrentamos no Brasil. Indianos bebem pouco e muitos nunca bebem. Sorvete de manga delicoso encerra o ritual, com um petit-gateau. Ao final, a esposa gentil do nosso anfitrião dá roupas de presente para as mulheres e ele nos declara parte da família. A hospitalidade é uma instituição mais sólida no Oriente do que no Ocidente.
As compras fascinam, como de hábito, o grupo. O dinheiro de outro país, especialmente quando se troca um dólar por mais de 45 rúpias, parece um pouco dinheiro de banco imobiliário. Dinheiro de brinquedo é mais fácil gastar: não parece ter origem ou custo. Para nossa referência, a caríssima São Paulo, quase tudo é muito barato. Ontem, num restaurante com talheres e copos de ouro no hotel, com uma refeição regada a várias garrafas de vinho, comendo entradas e pratos variados, tivemos a conta mais alta até agora: algo como 100 dólares por pessoa. Um restaurante de qualidade inferior em Sp, regado a vinhos, a conta passa de 200 dólares com facilidade, ou bem mais.
Tempo livre, dinheiro de banco imobiliário de brinquedo, coisas novas e coloridas: tudo transforma o grupo em vorazes consumidores. Jóias, pashminas, leques de pavão, roupas indianas, sapatos exóticos, temperos raros, pinturas em miniatura, obras de arte e até alguns livros: tudo vai lotando malas, suando carregadores, franzindo cenhos de maridos e satisfazendo desejos.
A viagem é interormpida para o almoço. Um spa com comida sofrível. Faço advertência sobre as lojinhas logo mais à frente. O assédio dos vendedores no passeio de elefante foi além do tolerável para o padrão brasileiro. Eles quase agridem para vender. Sabem que se insistirem à exaustão, conseguirão o que querem. São pobres, evidentemente pobres, e olham para os turistas como notas de rúpias que andam. Os mendigos seguem a mesma estratégia: encostam suas mazelas como o toco de um braço em nós, na esperança ambígua de alternar piedade e horror. Somos exóticos e lucrativos. Eles são apenas exóticos para nós. E chatos… Na labuta de camelôs e no lufa-lufa do comercio miúdo morre todo esforco antropológico. Não queremos mais entender uns aos outros: apenas nos livrar mutuamente, de forma rápida e, de preferência, com algum lucro. Viramos objetos: para um lado indianos insistentes que querem vender coisas de baixo valor agregado; do outro brancos arrogantes e ricos que deveriam dar seu dinheiro para gruos tão sofridos. Não há amor, mas prostituição: por uns cobres ambos acertam um breve intercâmbio sem muito prazer.
Descemos na cidade da vitória, constrída por Akbar e abandonada por falta de água. O grupo, após intensa catequese, caminha intimorato sem comprar nada. Exemplares, por vários minutos, as meninas resistem como Santo Antão no deserto. Inédita a experiência que dura até o ônibus. Já a salvo na cidadela do veículo, os produtos entram seletivamente no ônibus e pulseiras e colares e chapéus são comprados.
A Cidade da Vitória é majestosa, quieta e com um silêncio épico. Aqui Akbar, o terceiro e maior imperador mongol, queria criar seu desejado filho com Joddi. Aqui também se casou com uma hindu, uma turca e uma portuguesa. Visitamos cada um dos palácios das esposas. Tudo estranhamente vazio, ilustrando o clássico “sic transit gloria mundi”. A glória do mundo pode ser passageira, mas, enquanto não passa, pode ser impressionante.
Trecho final até o hotel ao lado do Taj Mahal: vemos agora um filme de Bollywood. Cores almodovarianas, enredo ingênuo e engraçado, músicas sem nenhuma relação com o filme. Enfim, Bollywood. O sol se põe em Uttar Pradesh, o estado mais populoso da Índia. Estamos quase chegando a Agra e ao Taj.

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