quarta-feira, 2 de março de 2011

Diário final by Leandro Karnal

01/03

As águas de março trouxeram o fim da viagem. Estamos a 34 mil pés de altitude sobre o Oceano Atlântico. O mapa na tela indica uma espécie de jogo de War com países e continentes. Estamos impacientes com um dia inteiro de viagem, como Vasco da Gama deve ter ficado com seus quase 2 anos para roteiro similar. Imagino que, diante de netos daqui a 30 anos, diremos algo que os deixará estupefatos como: “sabia que vovô ia para a Ásia e demorava quase um dia inteiro?” Eles rirão como rimos quando nossas avós contavam sobre penicos ou escarradeiras.
Cada um de nós saiu num horário e com um roteiro distinto. Em poucos dias todos terão chegado a suas casas, felizes e impactados. Presentes, fotos, memórias que permanecerão mais tempo até do que a fatura nefasta do cartão que insiste em puxar para o solo nossa metafísica espiritualizada indiana.
O que foi a Índia? Para cada um deve ser diferente. Não há como unificar o campo da memória. Mas cada um deve registrar um quebra-cabeça formado com as seguintes peças: as cores da Índia, as especiarias, o chá de masala, a pimenta em tudo, a pobreza, o cheiro, as jóias, o pão nan, o frango com curry, a pimenta em tudo, o idioma hindi, pavões, leques de pena de pavão, lojinhas, terceiro olho, as crianças vivas, os comerciantes insistentes, a pimenta em tudo, os hoteis luxuosos, estátuas de Shiva e de Ganesha, pessoas defecando na rua, preocupação com o padrão sanitário da água, a pimenta em tudo, batas, pulseiras, sáris, Roberto, fotos, fortes, palácios, pimenta em tudo, aulas , aeroportos, castas, riquixá, tuc-ruc, Aluana pedindo passaportes, a pergunta sobre se a comida “is it spicy”? e, por fim, pimenta em tudo apesar da resposta negativa e convicta à questão anterior.
Desafio interessante e cheio de êxito: mais de 20 pessoas com seus ritmos e individualidades conviveram mais de duas semanas e… não se mataram. Idiossincrasias varidas, percepções distintas, idades, velocidades: em resumo, pessoas em grupo. Não houve nenhuma briga. A harmonia foi acima do esperado para tais situações. Como eu disse certa feita: foi um grupo ótimo, que todos respeitaram todos e cada um fez exatamente o que desejou.
Na última aula eu destaquei como o mundo se povoava de links após uma leitura ou uma viagem. Coisas que antes nada ou pouco representariam, como a palavra Jodhpur, agora constituem um mancebo onde dependuramos lembranças intensas como roupas conhecidas e sobrepostas. Temas como pobreza na Índia ou cozinha indiana, que tantas vezes despontam nas conversas sociais em São Paulo, agora tem uma vivência nossa, agora são nossa biografia.
Platão disse (e cumpriu) que o filósofo precisava viajar. Por quê? Quando vivemos só nossa vida local, com os valores tidos como naturais e universais, pouco questionamos. Sempre vimos, e parece que sempre foi assim, que o branco do vestido de noiva seja a cor natural e eterna da alegria. Ao viajar somos submetidos à experiência de separar significado de significante, da coisa e do nome, da tradição e da sua subjetividade. Viajando nos tornamos tradutores, não de línguas, mas de sentidos. O tempo é curto de vida: urge viver. Como certeza final e decisive posso dizer: vivemos muito em fevereiro. No escaninho da alma agora fazemos parte da biografia de cada um. Isto é lindo. Torna-te quem tu és, afirmava Nietzsche. Tornamo-nos mais NÓS porque atingimos mais EU. Ano que vem em Jerusalém… Rimou. Um beijo: Leandro…

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Do nosso professor para o mundo...diário 5 by Leandro Karnal

27/02

Varanasi: a mais antiga cidade religosa em atividade no planeta se abre diante de nós. Era a parte mais enigmática, mais ansiada e menos glamourosa da viagem. A urbe sagrada apresenta-se, desde o início, barulhenta e feia. Trânsito caótico: só o Cairo pode ser mais dantesco. Fedor onipresente: vacas e pessoas defecando nos recém-chegados, sem cerimônia. Todos estavam preparados, mas a visao daquilo surpreendeu.

Comparando com os anteriores, o hotel Gateway é inferior. Canequinha de plástico no banheiro. Carpete com ácaros budistas no corredor. O lençol tem bolinhas e promove esfoliação suave. Assumimos resignação de casta.

Na noite da chegada vamos ver a cerimônia do fogo. Andamos de riquixá pelas ruas de Varanasi. Não é possível descrever a sensação. Buzinas, sempre, muitas. Comércio com mistura de 25 de março e favela. Vacas e pedintes. Carros, carroças, bicicletas, riquixás, procissão de casamento com neon em buquês, manequins mecânicos fazendo namastê: Joãosinho 30 não pensaria melhor nem se seu nome fosse com Z… Fedor, barulho, diferença, caos absoluto. Batemos fotos, olhamos, torcemos nariz e nos emocionamos. Exótico e repelente: uma espécie de Medusa social que petrifica nosso olhar.

Chegamos ao gatt, a escadaria que dá acesso ao rio sagrado do Ganges. Olhar para baixo é imperativo e prudente: pudins de hortelã deixados pelas sacrosssantas vacas escondem armadilhas a sapatos finos. Esterco aqui é como Deus: onipresente. Começa o enxame de vendedores. Um cardume, uma chusma que adeja a nossa volta. Sentem o cheiro de dinheiro, de estrangeiro e de mulher. Atacam a bombordo, estibordo e em razzias fulminantes. Querem vencer pelo cansaço. Na maioria das vezes, conseguem.

Seguimos de barco até o crematório onde os indianos acompanham seus parentes à pira final. Só homens. Mulheres em casa: seu choro pode prender a alma ao mundo material. O filho mais velho segue o cortejo com o mantra . ele está com cabeça raspada e com o branco do luto. Branco: a cor sem sangue e sem vida, a cor da dor e da morte no oriente. 250 a 300 quilos de madeira para queimar corpo. Fotos são proibidas. Olhamos de longe 5 piras ardendo. O impacto da cena provoca silêncio no grupo. Voltamos ao cais principal. Há 7 sacerdotes fazem a cerimônia do fogo para colocar a deusa Ganga, o Ganges, para dormir. Somos ateus com os deu ses alheios . No Ganges deixamos um pequeno coco com flores e uma vela sobre manteiga. Peço pelo meu pai ao depositar a oferenda votiva na água do rio. Peço a quem? A Shiva, padroeiro da morte e da cidade? Não sei, apenas penso no meu pai.

Novo trajeto de riquixá. Dou 500 rúpias ao homem do riquixá: um senhor de 1,5 metro e uns 40 quilos. Ele olha fixo e feliz a nota de 500: 10 dólares, quase 17 reais. Ele me levou e busco e pedalou como um hércules-quasímodo por Varanasi, a expressão que Euclides da Cunha usou para o sertanejo brasileiro.

NO di aseguinte vamos de novo de barco nos primeiros momentos da madrugada. Cerimônia de se purificar no Ganges e rezar ao sol nascente. Impressionante de novo. Na saída andamos pelas vielas e becos de Varanasi. Daí os vendedores caem sobre nós como varejeiras na carne crua. Um cachorro tenta mamar numa cadela sem uma perna. Uma mãe exibe a criança faminta. O cheiro, insuportável, paira sobre tudo. Pego o álcool de mão e tenho vontade de mergulhar nele, de ficar nadando na assepsia ocidental. Entramos no ônibus meio estupefatos, meio aterrados. Nascemos em famílias privilegiadas. Será mérito? Acidente?

Depois Sarnath e o local do primeiro sermão do Buda. Linda estupa e jardim. O pilar de Ashoka encanta a todos. Mais um comerciante de sedas e tecidos e resolve-se o dia. À noite aula e jantar muito bom. Estamos felizes e aliviados. Duas chinesas tapam o nariz ao passarem pela Deisy e pela Bia: preconceito é universal e cheiro relativo. Somos fedidos para elas. Elas insuportáveis a nós. Em cada esquina aprendemos sobre nossa subjetividade.

Varanasi...sem palavras e muita emoção.2

Varanasi...sem palavras e muita emoção.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Diário 4

25/02 sexta-feira
De novo ônibus , agora Agra-Delhi. Estradas lentas, lotadas, com caminhões à frente com o bizarro aviso: “please horn”. Buzinas movem veículos mais do que diesel, aparentemente.
Ontem tivemos uma aula e jantar de encerramento de uma parte do grupo, pois nem todos seguirão o curso do Ganges a Varanasi. Foi uma aula muito boa sobre Índia contemporânea e uma síntese da viagem. Depois um lindo jantar degustação que, como sempre, comemos sem saber bem o que era. Talvez seja melhor assim na Índia. O que os olhos não veem o intestino não sente. Secreta esperança que acalenta uma noite auspiciosa.
O dia de ontem foi marcado pelo amanhecer no Taj. Há algo de mágico em dormir num hotel vendo o Taj Mahal ao fundo. Saímos ao amanhecer, sem café, mas a hipótese do Taj mesmerizou a todos. Filas separadas para homens e mulheres. Enfim, o portão de arenito vermelho é o ultimo obstáculo para a visão. Mais alguns metros e a massa branca majestosa aparece diante do grupo. O taj, o marmóreo monumento ao amor, a forma arquitetônica mais conhecida da Índia está ali. É um lugar que vimos milhares de vezes em fotos. É um local que visitamos antes de estar aqui. Surge uma eletricidade similar ao momento no qual vimos as pirâmides de Gizé, a grande Muralha da China ou a Torre Eiffel. Eis algo que nunca vimos, mas sempre conhecemos. Amanhece e o sol dissipa a bruma. O Taj reluz do tom opala ao branco mais nítido. É um imenso barco de mármore navegando na bruma, a “lágrima na face da eternidade” que Tagore definiu. O amor que ergueu o momumento inspira as mulheres do grupo. Muitas perguntam: meu marido faria o mesmo por mim? Duas poderosas molas do feminino se combinam: a sedução de ser amada e o medo de ser menos amada do que outra foi. Amor exigente: O Taj agora é um novo metro de comparação.
O banco de Lady Di atrai rapidamente nosso interesse. Ali, onde a princesa de Gales deixou claro o fim do sonho do seu casamento diante do monumento do amor eterno, ocorreu um pequeno incidente. Judit ficam em frente a um espelho d’água para uma foto bem localizada. Afasta-se para dar passagem a uma parte da horda turística. Por fim, o desastre: ela perde o equilíbrio e cai na água que reflete o Taj. Todos nos assustamos. Felizmente, ela não se machucou. Molhada, amparada pelo grupo, volta ao hotel. O susto passou e já conseguimos brincar com o episódio. Mais tarde, quando alguém a procura e diz onde está a Judith? outra responde “procurando Nemo”, e o grupo explode entre risadas gerais. O banco de Lady Di ganhou” uma outra companhia batizada “o espelho d’água da dra Judit”.
O forte de Agra, sede do poder Mughal, é o maior e mais elaborado de todos que vimos. Mas é guloseima rara depois do jantar: já vimos tantos fortes e tantos palácios que não existe mais tanta atenção. A torre de jasmim , local da prisão do imperador que construiu o Taj, é o ultimo suspiro possível do interesse. Novamente assédio agressivo de vendedores e a Fortaleza, o xnagri-lá do ônibus. A caminho do hotel mais uma… lojinha.
Agora, terminada a etapa de Agra, o grupo perde 6 membros e o resto aguarda as brumas místicas de Varanasi. À nossa frente o final desta viagem. Como eu disse na última aula citando um rabino: o que aprendemos é a única coisa que nunca podem tirar de nós. Estamos mais ricos, e um pouco cansados… A Índia mudou por completo nas nossas mentes.